Os
« Ícones heterodoxos »
Artigo de Ludmilla Garrigou Titchenkova
15 de novembro de 2010.
Tradução do original em francês de Mosteiro da Transfiguração.
"ÍCONES HETERODOXOS"
Este artigo foi publicado na revista
« Cristãos em marcha” por Ludmilla Tichenkova, iconógrafa e fundadora do
atelier “São João Damasceno”, a pedido do Padre René Beaupère, padre católico,
diretor da revista e do centro “Santo Ireneu” em Lyon. O artigo dá um
esclarecimento sobre certos desvios iconográficos que acabam por seduzir católicos
de boa vontade, mas mal esclarecidos.
Como dizíamos durante nosso último
encontro, o assunto que o senhor nos propõe é polêmico. Talvez por esta razão é
que ninguém ainda ousou abordá-lo seriamente.... Obrigado, portanto, ao senhor,
padre católico, por ter a coragem de levantar esta questão importante a
respeito de ícones não canônicos que, para muitos, parece secundário e de pouco
interesse, e que, no entanto, choca muito os cristãos ortodoxos.
É necessário, antes de tudo, precisar
que não queremos de maneira alguma causar polêmica, ainda que muitos, ao ler
este artigo, creiam que é esta nossa intenção por causa da comparação ou
oposição inevitáveis que apontaremos entre Ocidente e Oriente.
Nenhum de nós
detêm a verdade e os ortodoxos nem sempre dão um bom testemunho: se eles falam
muito bem dos ícones, isto não quer dizer que todas suas igrejas refletem a
beleza descrita.
Laxismo no Oriente
Em nossos dias existe um certo laxismo
neste domínio. Talvez a falta de verificação por parte dos hierarcas é a causa?
“A Igreja sempre deu pouca atenção a sua arte: ela cuidava para que ela
exprimisse sua doutrina. Todos os desvios foram descartados conciliarmente
(...). Hoje em dia não há mais na Igreja um pensamento bem estabelecido e
explícito sobre a arte sacra, e ainda menos um controle das autoridades sobre
essas artes. Admite-se praticamente tudo no recinto eclesiástico”, nos diz o
Padre Zenon. “O ícone nasce da experiência eucarística da Igreja, ele está
estreitamente dependente desta experiência e, de maneira geral, do nível de
vida eclesiástica. Quando este nível era elevado, a arte sacra estava à mesma
altura; quando a vida da Igreja desbota-se ou quando chega-lhe tempos de
decadência, a arte sacra também caía em decadência. Nestes casos o ícone
tornava-se em quadro de tema religioso e sua veneração cessava de ser
autenticamente ortodoxa... ”, afirma igualmente Padre Zenon
Nota-se, efetivamente, que o ícone se
torna uma decoração de igreja ricamente ornada, mas vazia de sentido. Ou então
procura-se usá-lo na oração, mas ele é escrito de maneira incorreta. O que
fazer?
Em outros casos procura-se um
iconógrafo que cobre menos seu trabalho, mas que não tem uma verdadeira
formação iconográfica. Neste caso, o critério para escrever um ícone, ou para
pintar afrescos em uma igreja não é mais a busca da beleza, mas meras razões
econômicas.
Houve um tempo em que a Igreja Ortodoxa
no Ocidente, completamente carente de recursos financeiros, tentando levantar-se
das cinzas, utilizava os dons de cada um sem exigir “qualificação especial”. Mas
esses tempos passaram. Se admiramos hoje em dia certos ícones pintados
rapidamente sobre tábuas de compensado e com meios pobres, é somente enquanto
expressão do tempo pós-guerra, e não enquanto obras de arte exemplar sobre as
quais deveríamos nos inspirar. Não se trata de um novo período iconógrafo
diante do qual deveríamos nos extasiar.
Fantasias ocidentais
Somente depois deste preâmbulo podemos
abordar a questão dos “desvios de iconografias que acabam por seduzir católicos
de boa vontade, mas mal esclarecidos...”.
É de temer que o Ocidente, sob pretexto
de defender a liberdade de expressão antes de tudo, permita-se toda sorte de
fantasias; e que a Ortodoxia, infelizmente um pouco laxista neste domínio, como
acabamos de constatar, não mostre suficientemente o “selo de qualidade”
outorgando-lhe autoridade para apontar o certo e o errado.
Isto mostra o quanto o iconógrafo está
só e quase abandonado, na medida em que nada nem ninguém o controla ou apoia.
Ele é quase obrigado, por esta razão, a um incansável recopiar dos modelos
antigos para não correr o risco de uma interpretação errada ou muito pessoal.
Conhecemos épocas em que, por falta de
encorajamento ou de verificação por parte da Igreja, ícones belissimamente
pintados tornaram-se quadros religiosos ou ícones mais ou menos “pagãos”. Hoje
em dia constatamos praticamente o mesmo fenômeno.
Diante desta fraqueza da Igreja
Ortodoxa, o mundo católico, redescobrindo o ícone com admiração, mas recusando
ao mesmo tempo, seu lado estático e imutável, pode permitir-se, sem a menor
impunidade, toda sorte de interpretações. Neste sentido, aconteceu de ouvirmos
durante um curso de iconografia alunos dizerem: “Oh, vocês ortodoxos, sempre
limitados em suas tradições! Felizmente que nós, católicos, evoluímos e temos
liberdade de expressão! ”.
Mas onde nos leva esta tal “liberdade”?
Percebe-se facilmente que no Ocidente exige-se mais afeição e ternura de um
ícone. Assim, por exemplo, entre um Cristo Misericordioso com traços quase
humanos e um Cristo em Majestade, hierático e grave, é a primeira que será
preferida. E o ícone da Virgem Ternura, com olhar cheio de amor para o menino
Jesus, é o que mais atrai.
Mas não é a mesma coisa que se passa
com a liturgia? Observamos que durante as celebrações católicas, o aspecto
fraternal supera em muito o aspecto paternal tão patente na liturgia ortodoxa.
Cristo apresenta-se muito próximo, como um irmão mais velho, com quem podemos
ter toda a liberdade e dar “tapinhas nos ombros”... O Pai, ao contrário, é o
Criador, Aquele que pede um grande respeito, que impõe certa distância.
Elevar o ícone
Nosso comportamento durante a liturgia é
revelador de uma sensibilidade diferente. O mesmo acontece com nossa atitude
diante do ícone. Fascinado por sua cor, o cristão católico pode facilmente
substituir o buquê de flores por um ícone e colocar no chão, nos degraus da
escada do santuário, como faria para um vaso... e o contemplaria, sentado.
A atitude do cristão ortodoxo é
completamente diferente: ele “elevaria” o ícone no alto de um púlpito coberto
de finos tecidos e o honraria inclinando-se profundamente diante dele três
vezes e beijando-o. Isto mostra que um considera o ícone como um objeto a
contemplar e o outro o considera como uma pessoa que te olha...
Portanto, com essa liberdade de
expressão e uma sensibilidade diferente, é normal que haja desvios na execução
de ícones por parte dos “católicos de boa vontade mal esclarecidos”...
A teologia do ícone não é algo pessoal
ou puramente artístico. Ela concerne o conjunto da comunidade local (e
mundial). Por isto é impossível de separar esta teologia da igreja inteira.
O ícone não deve ser “inventado”, mas
“revelado”. Ele não pode ser uma justaposição de símbolos arranjados por uma
imaginação exagerada. Os verdadeiros símbolos são os que atravessam o tempo e
que têm um significado profundo que não pode ser expresso de outra maneira. Não
se trata de uma colagem de pedaços de ícones recortados aqui e ali e colocados
juntos. Mesmo se há ouro e o trabalho foi feito com perfeição, não será
obrigatoriamente um ícone.
Alguns exemplos
Neste contexto, é um erro grave
inspirar-se no ícone chamado “Concepção da Mãe de Deus”, que representa
tradicionalmente Joaquim e Ana abraçados, “concebendo” a Mãe de Deus, festejada
no dia 8 de dezembro. Este ícone foi considerado um novo ícone; mas a partir
dele foi pintado um outro casal, ternamente abraçado, do qual trocou-se o nome:
Maria e José...
Paul Evdokimov define o ícone como “A
Palavra (...) misteriosamente desenhada (que) se oferece em contemplação, em
teologia visual”. Na leitura deste ícone falso de José e Maria, ou escutando
sua palavra, o que nos é ensinado? Que Cristo é unicamente homem, tendo por
pais de carne São José e Maria... Que heresia!
Ícone teologicamente falso : Cristo não nasceu da união de Maria e
José.
Ícone correto da Concepção da Mãe de
Deus
Podemos igualmente denunciar o ícone da
“Sagrada Família” ou o de “Nossa Senhora da Aliança.
On peut tout pareillement dénoncer l’icône dite de
la "SAINTE FAMILLE" ou celle de NOTRE DAME DE L’ALLIANCE
Ícone teologicamente falso da Sagrada
Família
Nossa Senhora da Aliança : ícone
incoerente pois a Virgem não pôde conceber Cristo adulto e dois jovens
esposos !
Ícone correto: a Virgem do Sinal (ou
Virgem orante). Cristo no medalhão ainda está no seio da Virgem. Este ícone é
venerado antes do Natal.
Recentemente ouvimos falar de uma
“santa reação” de uma leitora de “França Católica” que nos tocou muito: “Estou
surpresa de ver vossa revista dar um espaço importante de publicidade a certos
ícones que usurpam este nome. Com efeito, se vocês mostrassem suas páginas ao
patriarca Bartolomeu I, a Olivier Clément e a outros, vocês saberiam que o
ícone tem que respeitar certas regras teológicas”.
Na rádio “França Cultura” Olivier Clément
explicou porque o ícone da Sagrada Família e o de Nossa Senhora da Aliança não
são compatíveis com nossa profissão de Fé. José não é o pai do Menino Jesus e
Maria é Virgem. A mão de José sobre o ombro de Maria e seu rosto colado ao Dela
dá lugar a desvios teológicos.
E o que falar de Nossa Senhora da
Aliança? Ela é um plágio aberrante de Nossa Senhora do Sinal, com um Cristo
adulto e dois personagens no seio de Maria.
É importante precisar que o ícone de
Nossa Senhora do Sinal é venerada no período do Advento pois atesta a
encarnação do Senhor. A Virgem grávida espera o feliz evento e nós esperamos
com Ela...
Outros ícones
heterodoxos.
Santo Honorato de Lérins : ele não
pode ter concebido Cristo!
A Virgem não pode ter concebido uma
multidão de santos!
Verdade traída
Se tais ícones devem ser denunciados, não
é unicamente porque eles não estão conformes à tradição, mas porque eles traem
a verdade. Diante deles podemos constatar somente impiedade e erro.
Os textos que acompanham com frequência
os postais desses falsos ícones reforçam a ideia de confusão. Neles lemos, por
exemplo: “O ícone da Sagrada Família... Através do mistério da união do homem e
da mulher, na fecundidade do amor (...). O Menino carregado pelos dois, é ao
mesmo tempo obra de Deus e fruto do amor”...
Eis onde chega-se hoje, com a liberdade
de expressão iconográfica!
Olivier Clément lamenta-se sempre: “Às
vezes, na Igreja Ortodoxa, temos a impressão que não se ousa mais pensar, visto
que os Padres da Igreja já disseram tudo: não se ousa mais pintar novos ícones,
ou diferentes, pois tudo já foi pintado?... ”. É verdade que a Tradição não nos
impede de renovar nosso “estilo”, mas ela nos impede de trair a verdade.
“O ícone tem um significado e um
fundamento dogmático. Em outras palavras, ele pode influenciar nossa maneira de
crer. É por isto que é necessário colocar um pouco de ordem no ensinamento e na
prática da arte do ícone”: é o que foi afirmado em um colóquio sobre a arte do
ícone realizado em 1996 em Moscou pelo Instituto de teologia ortodoxa São
Tikhon (SOP, nº 212, novembro de 1996, p.
12).
Memória e
anamnése.
Para concluir, lançamos mão de uma
outra citação de Olivier Clément: “A Igreja Ortodoxa é uma Igreja de Memória. Nisto ela pode
constituir-se um testemunho essencial para as confissões ocidentais que estão
ameaçada de anamnese. Mas ela não pode efetuar esta tarefa providencial somente
se ela não se deixar sufocar por esta grande memória. Nisto está o papel das
Igrejas ocidentais, de nos colocar em guarda e de nos incitar sem cessar a
reencontrar o sopro de vida do Espírito que faz novas todas as coisas”.
Ludmilla Titchenkova
Atelier São João Damasceno
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